Frustrações e sacríficios: um pouco dos dois primeiros anos de medicina
- Homero Rodrigues
- 22 de jan. de 2016
- 4 min de leitura

“São três da manhã. Pálpebras pesam, o pulmão expande, o ar entra quente pela boca. Os olhos passam a lacrimejar, o braço amolece, as pernas dormem, e em movimento ascendente, esse sono vai tomando conta de você. Um copo de 300 ml de café provavelmente vai dar conta disso. Sim, aquele xarope mágico e queimando desce suavemente pelo nosso trato gastrointestinal, sendo a injeção de ânimo pra continuar mais duas horas de estudo porque, afinal, você tem duas provas hoje: uma às 8 e outra às 14 horas. Acho que mais um copo de café basta, e depois um cochilo de uma hora, porque né, até o estudante de medicina merece uma horinha de sono antes da prova.”
Tive sorte por ter precisado fazer o vestibular apenas uma vez na minha vida, sim, e tive a inútil certeza de que não precisaria repetir as noites sem dormir, as maratonas incessantes de estudo e a estranha sensação de que não havia aprendido nada. Entrar na faculdade era até então o sonho, ainda mais na Unicamp, e fazer medicina então: onde monto minha plantação de ilusões nesse Jardim do Éden?
Realmente, tudo parecia perfeito, mas infelizmente, não é assim que as coisas funcionam. Veja bem: o curso de medicina na Unicamp é um dos melhores na América Latina, os professores, no geral, possuem um conhecimento enciclopédico, invejável, e te oferecem excelentes oportunidades de fazer uma iniciação científica com eles e com outros professores. O curso, do primeiro ao quarto semestre, é como um grande quadro dégradé! A euforia de calouro é muito gratificante, e te proporciona a ter mais essa ânsia por conhecer coisas novas, pessoas novas e instituições novas. O que é a Atlética? O que é o Centro Acadêmico? O que é uma Liga? Toda essa gana por conhecer novidades leva você a conhecer diversos mundos e enriquecer sua personalidade, ao ponto em que as próprias matérias da faculdade parecem desafiadoras, diferente do colégio, e te fazem se encantar mais pela faculdade.
Ah, mas estava bom demais pra ser verdade... Bem, aluno de medicina é um bicho bem imediatista, sabe? A gente já quer algo prático pra poder se sentir mais “medicão”; ao mesmo tempo dessa ansiedade fisiológica, ocorre também um fim de todo aquele sentimento de novo e começa a vir uma veteranisse que te faz ver tudo como velho e antiquado,que, de alguma forma, precisa ser novo mais uma vez. Vai por mim: anatomia é legal, fisiologia é show, mas depois de um ano visitando um laboratório cheirando formol ou tendo uma longa aula de duas horas, com slides biblícos, você acaba se sentindo desgastado de ciclo básico, e vai atrás de alguma atividade que te aproxime da medicina de verdade. E, infelizmente, na maioria das vezes isso não é possível, e lidamos com um dos sentimentos mais recorrentes em estudantes de medicina, a frustração.
Deixarei para explorar outra coisa recorrente no estudante de medicina para este segundo ano, que acabou de começar. Agora, você pertence a alguma tribo (voluntariamente ou não): ou você é da Atlética, utilizando suas jaquetas com os dizeres bem grandes: “MEDICINA UNICAMP”; ou você é do Centro Acadêmico, e está engajado com as políticas externas e internas da faculdade e acaba se tornando pouco presente em relação ao resto da sala; ou você é coordenador de uma Liga, marcando aulas, palestras, coffe-break, simpósios, atividades em workshops e em megaeventos da Unicamp, como o UPA (Unicamp de Portas abertas); ou você é simplesmente um aluno que não quis se envolver com nenhuma dessas instituições. Ou você é os três primeiros juntos, ou apenas os dois primeiros, ou o primeiro e o terceiro: a vontade de mudar, fazer diferente, junto com a vontade de fazer algo mais prático te levaram a participar de tais instituições? Não necessariamente, apesar de ser uma explicação bem plausível. Muitos já entram esperando entrar em alguma dessas, até mesmo por intermédio de um conhecido de antes de entrar na faculdade.
O que muitos não esperavam era a quantidade massiva de matéria que estava por vir; neuroanatomia, estudos de microbiologia, imunologia que davam três livros longos que precisavam ser conciliados junto às atividades extracurriculares que, além de serem cansativas, são infelizmente umas das poucas coisas que fazem a faculdade valer a pena, já que, se antes voce não via nenhuma utilidade prática no que estava aprendendo, agora bem menos. E é tanta matéria, mas tanta matéria, que virar noites, que no ano anterior era feito só em momento de puro desespero, passou a ser praxe, e deixar de voltar para sua cidade natal para ficar estudando tornou-se uma realidade cada vez mais presente. Seus amigos estranham sua ausência, o tempo para o crush ou para a crush torna-se mais escasso: os estudos te consomem, e você não quer ceder o tempo precioso das atividades extracurriculares, aquele tempo de vigor, aquele tempo do “vale a pena”. Você volta a praticar um ato que te acompanhava antes do vestibular: o sacrifício.
O segundo ano de medicina, principalmente o terceiro semestre, torna-se extremamente sacrificante e sem tempo; o quarto semestre costuma ser um pouco mais fácil de aguentar em termos acadêmicos, mas é bem mais chato, muito mais chato, chega a ser cruzes! Parece que não vai melhorar né? Quando essa frustração e quando esse sacríficio passam a valer a pena?
Todos dizem que a partir do terceiro ano, que tem semiologia e muito mais coisas práticas, o curso passa a ser bem gostoso e você começa a entender o que aprendeu no ciclo básico. Como estou prestes a viver esse momento, não tenho muito o que dizer sobre ele; no entanto, não quer dizer que não tenha visto a luz no fim do túnel. Em uma das disciplinas do curso que mais se aproxima de algo prático, nós fazemos visitas periódicas ao Centro de Saúde, e numa dessas andanças, eis que me deparo na situação de entrevistar uma idosa que mal podia andar, que mal conseguia me ouvir, que mal me via. No entanto, ela conseguia falar, e contava tantas experiências, compartilhava tantas histórias e fazia isso de maneira tão sorridente, que só o “obrigado por me ouvir” no final da entrevista foi o suficiente para eu entender o que faço aqui e o que vou fazer com o curso de medicina.
-- Depoimento de Homero Rodrigues - (estudante de Medicina da Unicamp)
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